4.3.08

Moschella sobre a Romênia

O violonista e jornalista brasileiro Alexandre Moschella, que deu um exitoso recital de violão ano passado no Museu George Enescu de Bucareste, organizado pela Embaixada do Brasil em Bucareste e pela Seção Nacional Romena da Sociedade Internacional de Música Contemporânea, teve a generosidade de enviar para o TPRB o seguinte texto abaixo reproduzido, tentativa de sintetizar impressões e sensações de sua primeira viagem à Romênia.

Bichos romenos

Como todo bom sonhador, eu tinha medo de ir à Romênia. Pois o sonho é sempre ameaçado pela realidade. Para o brasileiro médio, a Romênia é um conceito abstrato, até mesmo suspeito. O país é quase inexistente. Já para um brasileiro romântico como eu, a Romênia ainda era geograficamente remota, apesar da globalização, e habitada por seres e coisas maravilhosas e desconhecidas, apesar da televisão. Eu ouvira falar de incríveis histórias de vampiros e revoluções transcorridas naquele solo. Havia uma aura de magia. O grande perigo era chegar lá e encontrar um país europeu ancião, chato, no auge da crise da terceira idade, como tantos do Velho Mundo.

Além disso, a Romênia, antes de minha visita, era uma girafa. Lembrava-me Guimarães Rosa, que visitou um zoológico em Berlim e depois anotou em sua caderneta que a girafa o observava e dizia: "Você não existe." Pois bem. Eu tinha medo de que a Romênia me olhasse nos olhos e dissesse: "Você não existe." Como eu alimentava sérias dúvidas sobre a existência da Romênia, a recíproca poderia ser verdadeira.

Por sorte, assim que pisei em território romeno, percebi que meus temores eram infundados. A Romênia não me rejeitou e continuou mágica. Já no aeroporto, acolhido por um simpaticíssimo brasileiro-romeno de nome Fernando Klabin (uma espécie de elo aparentemente perdido, mas na verdade muitíssimo achado, entre esses dois países de existência tênue), tive certeza de que a realidade dura e crua do Velho Mundo não me ameaçaria. O chão não era rígido, o frio não doía e o calor parecia humano. O ar não era o meu, mas tampouco era o de Paris, aproximando-se mais do ar de um longa-metragem, talvez porque brasileiros e romenos ainda vivessem sonhando. Enfim, a Romênia parecia ter aquele não-sei-quê­ - isso mesmo, aquele autêntico, exato e inconfundível não-sei-quê.

Para encurtar a conversa e o caminho de Otopeni a Bucareste, digo que o mesmo ar me perseguiu o tempo todo, como se estivesse em todos os lugares. Acompanhou-me também no recital de violão clássico no Palácio Cantacuzino, onde recitei Guimarães Rosa em português, para mostrar aos romenos a música de minha língua. Eles gostaram. Por outro lado, eu mesmo já estava lambido, isto é, embebido na música da língua deles, tanto que recitei, numa espécie de transe, um poema de Marin Sorescu em romeno, mesmo sem conhecer tecnicamente o idioma.

Foi mais uma prova inesquecível, para mim, de que os dois países se tocam ao cortar o longo espaço que os separa em sua parábola incerta. Não me traduzi para os romenos e não traduzi meus anfitriões para o português. Por êxtase poético ou preguiça, escapei inclusive da realidade crua da língua desmistificada. E fingi falar romeno, brincando com os sons, o que me deixou ainda mais próximo dos romenos do que se eu falasse seu idioma decodificado. Sonoramente íntimo, transitei em seus barulhos. Escutei sua música durante duas semanas fantásticas. E que música! Para meus ouvidos inocentes, era uma espécie de português embaralhado, ou desembaralhado, dependendo do ponto de vista. Sons que Roma deixou e a Itália e Portugal roubaram de volta mais tarde, transmitindo-os para a colônia italiana no Brasil, onde nasci (essa história inexiste, o que comprova minha teoria).

Ouvi falar de romenos ilustres, como um tal Dracul, aqui no Brasil citado como Drácula, mas também como o próprio Diabo, ou Demônio, ou Cujo, ou Dito, ou Coisa-Ruim, ou Aquele. Visitei o que diziam ser seu castelo, no qual eLE contudo não havia deixado nenhum rastro. Desconfiei do personagem.

Mas disseram-me que um outro capeta bebedor de sangue já havia habitado aquelas terras. Atendia pelo nome de Ceausescu e construíra um castelo maior ainda, no meio de Bucareste. Desse havia rastros, de modo que tive certeza de sua existência. Foi uma descoberta dolorosa e cataclísmica, que sacudiu a singela aura inexistente de minha Romênia interior.

Respirei fundo e decidi aceitar Drácula em meus sonhos, mas não aquele outro capeta existente, chato e cru. Se algum bicho romeno me mordeu, foi o tal Dracul, ou então um daqueles vampiros que séculos atrás pululavam pelos campos e agora habitam o imaginário - se não os sótãos - das belas cidades. Existam ou não, voltarei para visitá-los.

Retornei ao Brasil com a sensação de uma irmandade bilateral subterrânea. Isso porque, ignorando a distância geográfica, política e comercial, muitos romenos se mostraram tão calorosos e hospitaleiros quanto muitos brasileiros que conheço. E os dois povos se tocam em muitos pontos além da língua: sua arte, sua literatura, sua música exibem a mesma vitalidade rítmica, a mesma potência anímica, quase apressada, ao manifestar sua vontade de existir. Assim pude confirmar mais uma vez que, pelas beiradas do chamado mundo desenvolvido, o bom humor ainda se esgueira. Gostei de ter mais espaço para rir. Obrigado.

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