10.12.09

Corre... porque faz frio!

Deficiente visual de nascença, o jornalista Marcos Lima [na foto, diante do Palácio do Parlamento em Bucareste, o maior edifício civil do planeta] gosta mesmo é do seu trabalho como vice-presidente da Urece Esporte e Cultura, uma organização sem fins lucrativos que desenvolve atividades esportivas e culturais, no Rio de Janeiro, para pessoas com deficiência visual. O carioca chegou este ano a Bucareste justamente no dia do seu aniversário e não quer mais partir. E os motivos estão longe de ser profissionais. Leia abaixo algumas impressões sobre a Romênia que o jovem brasileiro teve a gentileza de repartir conosco.

A primeira vez que ouvi falar em Romênia foi durante a Copa de 1994. Amante de futebol e de nomes diferentes, logo adotei o time comandado por Hagi, muito bem coadjuvado por nomes como Petrescu, Popescu e outros Escus que ganharam ainda mais o meu apreço ao mandarem a Argentina, nossa eterna rival no futebol, de volta para a casa mais cedo. Depois ouvi que Drácula, que eu nem sabia quem era direito, fora na verdade um príncipe romeno. E eu, que adorava decorar as capitais do mundo, fixei que Târgoviste um dia fora a capital do antigo principado da Valáquia.

Quinze anos depois, os caminhos da vida e do coração me trouxeram a Bucareste. Essa semana, dois dias depois de ter visitado Târgoviste, voltava do estádio Ghencea, onde o Unirea Urziceni (treinado justamente pelo Dan Petrescu da minha infância) havia batido heroicamente o Sevilla pela Liga dos Campeões. E, caminhando pelas ruas da capital romena, ansioso para chegar em casa e aquecer-me, me lembrava das várias vezes em que, no mesmo horário, regressava à casa depois de um jogo no mítico estádio do Maracanã. O clima naquelas ocasiões era mais agradável, sem dúvida, mas ainda assim corríamos, porque temíamos uma emboscada a cada esquina. E foi aí que eu me dei conta do quanto eu gosto de Bucareste.

Não sei, a língua romena é muito bonita, as pessoas são simpáticas e até prolixas na hora de dar informação, o sistema de metrô é muito mais abrangente que o do Rio de Janeiro... Mas eu acho que a grande coisa aqui é a segurança. Claro que é possível que te furtem a carteira, mas o principal é que aqui a gente não vive com medo. Muitas vezes cheguei de viagem em Bucareste mais de meia-noite, esperei táxi na rua e ninguém me disse para ter cuidado.

Claro que na Alemanha, país onde estive por algum tempo este ano, as cidades são tão ou inclusive mais seguras do que aqui, mas se considerarmos que a Alemanha é um dos países mais desenvolvidos no mundo e que os IDH de Romênia e Brasil são bastante parecidos, o fato de Bucareste ser mil vezes mais segura que o Rio de Janeiro é algo que chama a atenção. Chegar em casa depois disso e ler que os ônibus da Linha Amarela mudaram o trajeto porque os traficantes os estavam sequestrando e os levando para as favelas, ou que o helicóptero da polícia de cinco milhões de dólares foi derrubado ou que Vila Isabel e vizinhanças pararam por causa de uma guerra entre traficantes no Morro dos Macacos, tudo isso me dá uma vergonha danada.

Se compararmos Rio de Janeiro e Bucareste em termos de belezas naturais, a capital romena sai em flagrante desvantagem. Bucareste não tem Cristo, não tem mar, não tem Baía de Guanabara, Pão de Açúcar, Maracanã, Copacabana... Nem dentro da Romênia Bucareste é o principal destaque turístico. Mas o número de assassinatos aqui por ano é estimado em 24, ou seja, a mesma quantidade de uma calma noite carioca. Tenho que confessar que fiquei constrangido ao mostrar o filme Tropa de Elite à minha namorada romena, simplesmente porque não pude concordar quando ela me perguntou "mas isso só acontece em filme, né?".

E acredite, a Romênia é tão pobre e corrupta quanto o Brasil. Eu amo o Brasil, mas estar aqui e viver isso me faz pensar que a gente tem que parar de culpar os outros pelas coisas que acontecem com a gente. Não é a pobreza a causa da violência, porque Bucareste é também uma cidade pobre, em que creio a média dos salários é mais baixa do que em muitas partes do Rio. Eu espero muito que as Olimpíadas de 2016 sirvam pra gente fazer algo contra isso, porque viver aqui tem me dado essa noção. Sempre tinha exemplos de países ricos, mas agora que posso comparar com a Romênia, fiquei com vergonha de coisas que a gente atura no nosso dia-a-dia e pensa que é normal porque nos acostumamos com pouco.

Não tem preço andar na rua sem ter que se preocupar se alguém vai chegar armado e roubar todas as suas coisas. E, de longe é possível ter uma noção maior do quanto a gente vive numa guerra urbana no Rio. Li certa vez sobre uns bandidos que assaltavam edifícios no meu bairro e preocupei-me por minha família, quis saber deles. Aqui, o máximo que pode acontecer é alguém bater sua carteira, o que é uma coisa bem chata, obviamente, mas é algo que você também está sujeito em Nova York, Tóquio, Chicago, Madri, Berlim, etc. Não estou dizendo que a Europa ou no caso específico Bucareste seja o antro da segurança universal, mas simplesmente não existe a possibilidade de bandidos fecharem uma rua e fazerem um arrastão ou derrubarem o helicóptero da polícia com armas de uso exclusivo do exército (a polícia aqui nem precisa ter helicóptero). Não existe a possibilidade de te arrancarem à força do seu carro, com armas na mão e levarem-no, isso quando você tem a sorte de não ser assassinado ao volante. Eu fico pasmo como muitas pessoas não entendem isso, estamos muito dentro dessa guerra urbana e achamos normal não podermos sair de noite ou estarmos com medo sempre.

E essa semana, enquanto voltava do Ghencea, comentava com minha namorada, ela uma fervorosa crítica das coisas que não andam bem na Romênia: "você não tem idéia do quanto é bom viver em um lugar onde você só precisa apressar o passo porque está frio".

1.12.09

O Diário da Felicidade no Brasil

A primeira tradução brasileira de O Diário da Felicidade, de Nicolae Steinhardt, realizada por Elpídio Fonseca e revista por Cristina Manescu, será lançada dia 17 de dezembro de 2009, às 19:00 horas, na sede da editora É Realizações em São Paulo.


Reproduzo parcialmente, abaixo, texto de apresentação assinado pelo tradutor.



"Habent sua fata translationes, ou do porquê traduzi O Diário da Felicidade, de Nicolae Steinhardt?

Coisas há que passam sem ser cridas,
E coisas cridas há sem ser passadas,
Mas o melhor de tudo é crer em Cristo.
(Camões, terceto final do soneto CV)

A pergunta mais do que natural que surgirá ao leitor deste livro é: por que um brasileiro traduziria para o português um livro de um monge romeno aqui desconhecido? E a história, longa, mas que procurarei resumir em algumas linhas, remonta ao ano de 1980: enquanto me dedicava aos estudos de língua portuguesa, vi a indicação de uma gramática romena na série de livros que manuseava e disse: por que não aprender tal língua?

Mas a realização desse plano só se daria dali a 18 anos quando conheci aquela que viria a ser minha esposa e que, num primeiro encontro, me emocionou tanto pela correção com que se expressava em português, que pensei com meu botões: o mínimo que essa moça merece é que eu aprenda a língua dela, se não tão bem quanto ela fala a minha, ao menos num nível que possa homenageá-la.

Indicando ela um curso de auto-aprendizado, com fitas cassetes, qual não foi a minha surpresa quando ela também me recomendou aquela mesma gramática de dezoito anos antes! Comecei o curso por conta própria, e, após seis meses, passei a namorar aquela com quem me casaria. Passado um ano, fiz com ela minha primeira viagem à Romênia, onde pude falar pela primeira vez e compreender sofrivelmente o romeno. Depois disso, com a ajuda de minha mulher, passei a falar razoavelmente.

Eis que um dia de 2004, enquanto ouvia de novo uma aula do curso de filosofia de Olavo de Carvalho, de 1998, atentei para um projeto de que ele falava entre as embaixadas da Romênia e do Brasil, tendo à testa, então, o Embaixador Jeronimo Moscardo, segundo o qual haveria traduções de livros de filosofia romenos em português, e traduções de livros de filosofia brasileira em romeno: faziam parte da lista obras de Mário Ferreira dos Santos, do próprio Olavo de Carvalho, Constantin Noica, Lucian Blaga e Nicolae Steinhardt.

O projeto, de 1998, infelizmente morrera e, dos livros planejados, apenas um, de Noica, As seis doenças do espírito contemporâneo (com tradução de Fernando Klabin e Elena Sburlea, introdução, edição, notas e comentários de Olavo de Carvalho, e revisão técnica de Carlos Nougué, biblioteca de filosofia, Record, 1999), fora publicado. Depois que Olavo de Carvalho terminou de falar, na fita cassete, sobre O Diário da Felicidade, de Nicolae Steinhardt, tive uma iluminação e pensei: ora, sei um pouco de romeno, por que não traduzir O Diário da Felicidade? Vou tomar a peito essa empreitada.

Imbuído da vontade de traduzir Steinhardt, propus esse meu plano ousado à minha esposa, que concordou. Finalmente, em 2006 terminei a tradução e minha esposa entrou em contato com a editora do mosteiro de Rohia, para que este negociasse os direitos autorais do livro com Edson Manoel de Oliveira Filho, esse destemido editor que, desde o primeiro momento em que lhe falei de meu projeto, prometeu-me que publicaria o livro no dia seguinte ao em que eu o entregasse.

Depois de alguns contratempos, minha esposa começou a revisão e, como demorasse a resposta do mosteiro, fomos ela e eu, juntos, a Rohia, em janeiro de 2007, e formalizamos o contrato.

De volta ao Brasil, houve uma espera de quase um ano e meio até chegar assinado o contrato: mal sabíamos que tal demora seria providencial, pois, nesse ínterim, duas novas edições se tinham feito em romeno, aumentando, de muito, o número de notas e de informações, o que só viria a beneficiar o público brasileiro, até agora jejuno de Steinhardt.

Mas não era de se esperarem menores dificuldades, quando se sabe que maiores agruras se abateram sobre Steinhardt, cujos manuscritos do Diário por duas vezes lhe foram confiscados pelo regime comunista da Romênia, obrigando-o a reescrever a obra, para, depois, ver devolvido o primeiro manuscrito.

Hoje, sinto-me plenamente recompensado, pois, envidando esforços superiores às minhas forças, consegui, ao menos em língua portuguesa, atender, sem que o soubesse à época, o pedido que, pouco antes de partir, fizera Steinhardt a seu amigo Virgil Ciomoş:

Sabe, meu caro, faço enorme questão que este Diário apareça. Sem este testemunho público, eu me sentiria culpado diante de Jesus. Gostaria de pedir-te, assim, que retenhas três coisas que te confiarei com língua de morte: 1. Dize a todos que tive fé, de todo o meu coração, em Jesus Cristo, nosso Salvador. Cristo é um grande poder, irmão Virgil, uma grande alegria e uma felicidade ainda maior. A única coisa que ele deseja para nós é fazer-nos felizes. Houve um Instante em que se apiedou também de mim - o inútil - e me tomou para dizer-me que me perdoara. Era em Braşov. Nem sei quanto durou! 2. Dize-lhes ainda que amei sinceramente o povo romeno e que cheguei até a enamorar-me de seus defeitos e 3. toma conta do Diário.

Num Brasil, onde professores de direitos humanos vão fazer curso de especialização na ilha prisão, que é a Cuba do tirano assassino e traficante de drogas que é Fidel Castro, sem se darem conta da incongruência desse ato, este livro servirá de libelo para tirar-lhes a máscara, trazendo-lhe a público o rosto sujo da ignorância ou da conivência.

Elpídio Mário Dantas Fonseca"

Pode ser visto aqui um documentário primoroso, intitulado Arheologia Regasirii, de cerca de uma hora e vinte de duração, realizado por Vasile Alecu em 2006 para a Televisão România Cultural, acerca de Steinhardt e O Diário da Felicidade, entrevistando as principais pessoas da vida deste: o padre Mina Dobzeu, que o batizou, o abade Serafim Man, que o recebeu no mosteiro e o fez monge, Justinian Chira, por intermédio de quem entrou no mosteiro, Justin Hodea, atual bispo e companheiro de mosteiro, Virgil Bulat, companheiro de cela, George Ardeleanu, historiador literário.