27.1.10

Steinhardt em português

Transcrevo, a seguir, artigo intitulado Memórias de um mártir cristão no inferno do totalitarismo, de autoria de Felipe Cherubin, publicado em 17 de janeiro de 2010 pelo jornal O Estado de S. Paulo.

O Diário da Felicidade, de Nicolae Steinhardt (1912-1989), é uma surpresa no circuito editorial brasileiro. Afinal, por que publicar um livro de memórias de um monge ortodoxo romeno aqui desconhecido? Primeiro, porque O Diário da Felicidade é um documento histórico, esforço pessoal do monge Nicolae para preservar a dignidade humana e manifestar resistência espiritual por meio da literatura, sendo uma resposta ao fenômeno totalitário, isto é, da capacidade humana de resistir e realizar sua plenitude, mesmo diante de intensa privação. Segundo, O Diário é uma obra-prima literária que transita por uma lista infindável de autores da cultura humanística, num verdadeiro espírito de abertura intelectual. Texto confessional na tradição socrático-agostiniana, nele a preservação da memória e a confissão sincera são aspectos indissociáveis que moldaram a vida e o pensamento do monge e revelam, sobretudo, o lado mais perverso da cultura e da política romena sob o regime comunista, entre 1947 e 1989.

Steinhardt conviveu com importantes intelectuais romenos, como Noica, Eliade, Chimet, Cioran e Ionesco. Recebeu reconhecimento do papa João Paulo II, admirador de sua obra.

As ideias que desenvolveu não se reduzem apenas ao universo romeno. Sua grande lição é que o totalitarismo, como fenômeno universal, muda de nome, mas sua natureza persiste - o fato é que a liberdade humana sempre estará diante desta ameaça.

Assim, Steinhardt não fica apenas no relato autobiográfico. Seu diário revela uma visão libertária, apresentada de forma fragmentada no decorrer do texto (por meio de flashes entre o passado e o futuro) e segue, surpreendentemente, um fio condutor coeso, que dá unidade à cosmovisão proposta e vivida pelo autor.

Essa unidade, em linhas gerais, está disposta, primeiramente, por meio da conversão de Nicolae ao cristianismo e da própria essência do que é ser cristão e, secundariamente, pela lição apresentada na forma de três soluções para o homem resistir diante da mais dura opressão, ilustrada por fatos biográficos da tríade Solzhenitsyn, Zinoviev e Churchill. As soluções, supostamente simples, são difíceis de seguir: seus escritos são uma lição de como guiar a si mesmo num cenário desesperador, dominado pelo niilismo e o absurdo.

Em O Diário da Felicidade, fica claro que Steinhardt desenvolve seu pensamento colocando o problema de Deus não em aspectos teológicos, mas antropologicamente, como drama do homem concreto - dessa maneira, são acolhidas as ideias de Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Thomas Mann, Franz Kafka e, principalmente, Dostoievski, pensadores que trataram da questão existencial, do pecado e da redenção. Citando as lições de Dostoievski, Steinhardt faz uma interessante defesa da condição humana, fundada no livre-arbítrio, apontando o mal não como criação divina, mas consequência da liberdade humana.

A grande contribuição do seu diário é resgatar a mensagem cristã original, desmistificando aquela visão do cristão como um homem recluso, pudico, que renuncia à vida da matéria em nome da conquista do paraíso. O cristianismo existencialista de Steinhardt está com os olhos no presente, em contato constante com a mundanidade e as vicissitudes da vida. É o cristianismo que agrega e abriga e que vive com o a mente e o coração em Deus, mas com os pés no chão.

No pensamento de Steinhardt, em que vida e política são indissociáveis, voltamos ao velho ideal platônico da República, isto é, devemos cultivar a virtude privada para não cairmos no vício público, procurando, assim, equacionar de um lado a lei e a ordem da vida civil e, de outro, a esfera da liberdade individual, evitando a domesticação totalitária e a anarquia.

24.1.10

Steinhardt no Brasil: entrevista

Transcrevo, a seguir, artigo intitulado O monge que achou a liberdade na prisão, de autoria de Antonio Gonçalves Filho e Felipe Cherubin, publicado em 17 de janeiro de 2010 pelo jornal O Estado de S. Paulo.

O Diário da Felicidade, primeiro livro do monge ortodoxo romeno Nicolae Steinhardt publicado no Brasil, chega às livrarias para apresentar ao leitor um autor praticamente desconhecido. Steinhardt, no entanto, foi um dos pensadores mais intrigantes da cultura romena no século 20. Nascido em Bucareste, no seio de uma família judia, teve formação jurídica e logo se tornou crítico literário, manifestando profunda erudição.

Steinhardt publicou pouco em vida. São textos que se resumem a análises literárias - com exceção de O Diário, sua obra-prima -, legado de uma vida que testemunhou o lado mais sombrio da cultura e da política romena.

Em 1960, Steinhardt, interrogado pela Securitate, polícia ideológica do regime comunista romeno, recusou-se a colaborar como testemunha de acusação no processo movido contra um grupo de intelectuais, entre eles seu melhor amigo, o filósofo Constantin Noica.

A sua recusa lhe custou a pena de 12 anos de trabalhos forçados, dos quais cumpriu 4. Convertido ao cristianismo na prisão, ele foi libertado em 1964, retirando-se para a vida no mosteiro.

Publicado pela É Realizações (554 páginas, R$ 110), O Diário da Felicidade foi traduzido por Elpídio Mário Dantas Fonseca, estudioso da obra de Steinhardt. A seguir, o tradutor fala, em entrevista exclusiva concedida ao Estado, sobre o livro.

Certas passagens do livro marcam uma mudança formal na linguagem de Steinhardt, considerando que num dos primeiros livros, À Maneira...de Cioran, Noica, Eliade, ele emulava o estilo de outros autores. Steinhardt buscava deliberadamente essa imitação ou um caminho próprio? Qual a sua conclusão sobre a sua construção estilística?
A construção estilística dele revela um autor com o completo domínio da língua. Então, propositadamente, procurei manter o nível elevado onde era elevado e o nível vulgar onde era vulgar. Algumas vezes ele emprega palavrões, expressões cruas, estão assim no romeno. Minha ideia foi a de manter em português a mesma construção original.

É difícil entender o enredo da obra e da vida de Steinhardt sem o conhecimento prévio de sua relação com Constantin Noica, amizade, aliás, que o levou à prisão. Que tipo de envolvimento ele teve com o filósofo?
Steinhardt e Noica foram alunos do filósofo romeno Nae Ionescu, além de terem feito parte de uma geração de grandes intelectuais - Emil Cioran, Eugène Ionesco e Mircea Eliade. Eles tinham uma grande amizade e o próprio Steinhardt considerava Noica um segundo pai, que o fez nascer de novo, apontando o mosteiro onde passou seus últimos anos. O crítico Virgil Bulat, aliás, considerava suas obras filosóficas complementares. A vida de Steinhardt está intimamente ligada à de Noica, um dos muitos intelectuais romenos que confrontaram o regime instalado em seu país e passaram a ser perseguidos, tendo obras censuradas. O simples fato de se falar mal do regime em reuniões levou o governo a infiltrar nelas espiões e controlar o movimento dessas pessoas. Isso provocou a prisão de 22 intelectuais em 1958, entre eles Noica. O último a ser encarcerado foi Steinhardt, de quem exigiram que fosse testemunha de acusação do grupo, mas, a despeito de ter sido traído por todos os amigos, não traiu ninguém.

O título do livro de Steinhardt é curioso. Por que O Diário da Felicidade? O que era a felicidade para Steinhardt? Como lidar com esse paradoxo da noção de felicidade num período de quase meio século de memórias marcado por fatos sombrios?
A felicidade para Steinhardt está fora do tempo, independente do ambiente circundante. Ele a encontra nas piores situações. Ela está fundamentalmente associada à conversão ao cristianismo. Steinhardt diz que são os anos mais felizes da vida dele, pois foi a prisão que o levou ao cristianismo, do qual vinha se aproximando havia muito tempo. Mas foi a possibilidade de morrer sem ser batizado que o levou à conversão.

O Diário da Felicidade recorre a um estilo literário confessional, em que a preservação da memória e a sinceridade são eixos que desenrolam a narrativa da biografia de Steinhardt. A que tradição ele estaria filiado?
Ele está numa linha direta com Santo Agostinho, isto é, a confissão cristã do abrir-se totalmente diante Daquele que tudo sabe para que possamos saber ainda mais acerca de nós mesmos.

É possível classificar O Diário como um testamento político, uma resposta contra o fenômeno do totalitarismo?
Sim. Steinhardt se concentrou em problemas que Constantin Noica, por exemplo, acreditava serem menores. Noica teve uma preocupação de resgatar o passado e dirigir-se ao futuro em suas aulas de filosofia, afastando-se de um mundo que o repelia, ao passo que Steinhardt não. Ele dá o testemunho diante das condições mais desfavoráveis, põe em prática aquilo que aprende da filosofia e da religião. Então, as palavras dele são cheias de sentido. Tudo o que ele diz nesse livro foi vivido, não foi da boca para fora.

Levando em conta o grande número de citações de filósofos e escritores existencialistas, em que medida o cristianismo de Steinhardt foi marcado pela leitura de Sartre ou Camus?
O que eu posso dizer, de forma geral, não só em relação ao existencialismo, mas a respeito de uma série de outras teorias e confissões religiosas do livro, é que o cristianismo, como mostrado por Steinhardt, é o verdadeiro cristianismo e não a caricatura com que estamos acostumados a ver. Ele analisa, apanha o que importa e rejeita o que não interessa.

Mas, como cristão, Steinhardt cita uma série de autores que poderiam, de certo modo, serem entendidos como seus antípodas, entre eles Jean Genet. Por que Steinhardt, curiosamente, se concentra em autores fora da tradição cristã?
Em relação a outras personagens que Steinhardt cita em O Diário da Felicidade, ele busca aquilo que em determinado momento expressa o comportamento cristão. Na verdade, o cristianismo abrange tudo isso - abrange e supera - então, não é simplesmente pelo fato de alguém ser anticristão que tudo aquilo o que ele diz será 100 % errado. É exatamente aquilo de colher o que importa. Essas pessoas não ficaram cegas para tudo. É o próprio divino que fala com cada um de nós. É isso que Steinhardt identifica nessas pessoas.

Steinhardt, ao longo de sua vida, esteve diante de pelo menos duas grandes ameaças: primeiro, o antissemitismo por causa de sua origem e o comunismo romeno. Como isso o afetou?
Em relação ao antissemitismo, Steinhardt, ao entrar no mosteiro, escreve uma pequena autobiografia na qual diz que não sentiu de perto esse preconceito já que o pai, engenheiro e herói da 1ª Guerra, era o que se chamava de judeu de segunda classe - havia separações nessa época, sendo os judeus de primeira classe os grandes industriais, e os de segunda classe, profissionais liberais. Então, ele não sentiu o antissemitismo, ainda mais pela proximidade da família dele com cristãos ortodoxos - na verdade, ele passou a sentir que era repelido pela comunidade judaica após sua conversão ao cristianismo. No caso do comunismo romeno e do totalitarismo em geral, ele tem um livro em que mostra quando começam os sinais da corrupção do Direito. Steinhardt identifica isso no fim do século 19, na Sorbonne, produzindo um livro para repudiar essas novas tendências do Direito à luz do Direito Constitucional tradicional.

Em que linha filosófica você colocaria o trabalho de Steinhardt?
Numa linha direta socrática com um ponto alto em Santo Agostinho, no sentido de ser um pensador que retoma a filosofia e passa a vivê-la, colocando em choque concepções que antes eram tidas como certas, ou seja, a filosofia tomada a partir da vivência real e concreta - aquela que está em busca da sabedoria.

Embora Steinhardt seja um monge, ele tem uma forte ligação com a modernidade, apresentando em seus textos considerações sobre ciência e tecnologia. Como ele se relaciona com elas?
Esse é um lado que foi esquecido por alguns cristãos hoje em dia, do papel do cristianismo na formação do Ocidente, e especificamente a Igreja Católica, que perdeu a hegemonia cultural na modernidade. Eles deixaram de estar a par daquilo que acontecia, de serem sacerdotes, não só do ponto de vista ritual, mas também intelectual. A tecnologia e as ciências nunca podem ser contrárias à realidade, elas partem do pressuposto do real. É a abertura do pensamento de Steinhardt à realidade, própria do cristianismo, que foi perdida.

Nicu-Aurelian Steinhardt, filho de mãe romena e pai judeu, nasceu na Romênia em 1912. Seu pai, engenheiro e arquiteto, foi herói da 1.ª Guerra Mundial. Por linha materna, Steinhardt era parente do psicanalista austríaco Sigmund Freud, a quem costumava visitar em sua juventude. Formado em Direito, frequentou também o curso de Letras na Universidade de Bucareste. Estreou cedo no universo literário, colaborando com algumas publicações. Sua primeira obra a vir a público foi um pequeno volume de posição "liberal-conservadora", escarnecendo tanto das manifestações da nova direita e elitistas quanto as da esquerda. Entre os parodiados estavam Constantin Noica, Emil Cioran, Mircea Eliade, Petru Comarnescu e Geo Bogza. Foi grande amigo do filósofo Constantin Noica e conviveu com os principais intelectuais romenos do século 20.