Das terras opacas e cinzas da gelada Romênia vem uma preciosidade sensível do cinema contemporâneo. 4 meses, 3 semanas e 2 dias (4 luni, 3 saptamani si 2 zile, 2007), que estréia esta semana no Recife, é o segundo longa-metragem do jovem diretor Cristian Mungiu. A impressão, porém, é a de um veterano com uma condução segura e burilada por trás das câmeras. Longe da máquina de Hollywood, o cineasta romeno fez uma obra-prima simples, desprovida de enfeites, mas com uma abordagem incisiva e doses de realismo contundente. Logo de imediato, o filme causou comoção perante a crítica e arrebatou por aclamação a Palma de Ouro no Festival de Cannes do ano passado (há décadas não se via uma unanimidade assim na Croisette) - uma honra mais que merecida. Esqueça a categoria de melhor filme em língua estrangeira do Oscar, à qual sequer foi indicado entre os cinco. Este é, sem dúvida, uma das gratas surpresas de 2007.
É fácil entender por que 4 meses…, que tinha tudo para dar errado, inverteu o jogo a seu favor. Com parcos recursos financeiros, Mungiu tinha em mãos um tema árido - o aborto clandestino, baseado em uma experiência autobiográfica, tendo o autoritarismo do regime militar do ditador Ceaucescu, de 1987, como pano de fundo - e munição de sobra para armar um melodrama carregado nas tintas. Mas fez melhor. Costurou a história de duas amigas, Gabita (Laura Vasiliu) e sua amiga Otilia (Anamaria Marinca), que percorrem uma via-crúcis dolorosa e amarga para fazer um aborto no mercado negro, com um olhar humanista sobre os dramas pessoais. Mungiu preferiu passar a largo de discussões acaloradas (e panfletárias) acerca de posições políticas e proselitismos. E acerta em cheio: não há arestas, o que resta são imagens que revelam o interior mais puro dos personagens, seus medos, fraquezas e hesitações.
Por isso que o filme não se limita a discutir os méritos do aborto. Muito menos parece ser do feitio do diretor pôr mais lenha na discussão propondo moralismos e soluções fáceis para “eliminar” o sintoma social. Aparenta, em si, ser mais uma obra que crava suas garras na hipocrisia e naquilo que há de mais frágil e deteriorado nas relações humanas. Ou seria o aborto apenas um ato mecânico como sugere ironicamente o título, uma contagem de tempo para fins cirúrgicos? É nesse sentido que brilha Otilia, a amiga que luta, corre e se doa por inteira (além até dos seus próprios limites) para ajudar Gabita, que é o seu inverso, passiva e dissimulada, a se livrar do feto. Humana e forte, Otilia é a única personagem lúcida desta trama rodeada por pessoas anestesiadas pela atmosfera cinzenta de Bucareste.
Apesar dos elogios em profusão, Mungiu recebeu críticas ferozes pela sua forma áspera de usar a câmera. Os planos sistematicamente estáticos, como na cena em que as garotas negociam com o médico clandestino ou no jantar da casa do namorado de Otilia, em vez de mostrar várias tomadas e ângulos diferentes - acusam os analistas - sugerem uma “manipulação” do olhar. Quando, pelo contrário, a lente potencializa a sensação de náusea e a asfixia do ambiente e de quem transita nele. Também desferiram muitas críticas a ele quanto à crueza de algumas cenas. Mungiu explicou que, a partir do momento em que o filme chegou a uma sinceridade sem restrições, a imagem nua, seja ela bela ou feia, fez-se necessária.
Outra marca de Mungiu é o de posicionar a câmera apoiada “nas costas” dos personagens, como se tentasse acompanhar o mais perto possível o que cada um deles vê e sente, o que lhe rendeu comparações aos irmãos Dardenne. O diretor romeno, no entanto, finca com esta obra seu estilo próprio na cinematografia. Com um modo de enquadrar aparentemente seco, extrai de um único plano o que muitos não conseguem fazer em um filme inteiro. Mas não é de todo tenebroso. Há também muita ironia, quebras de expectativa, pequenas pistas falsas, intenções e refugos, como uma parábola para a própria vida: um ciclo de coisas que começam e não terminam, ficam em aberto simplesmente, sem explicação.
Denso e terno, 4 meses… coroa a ótima fase do cinema romeno, que vem obtendo destaque nos últimos anos com produções de alta qualidade, a despeito dos baixos orçamentos, como é o caso do excelente À leste de Bucareste, de Corneliu Porumboiu, e A Morte do Senhor Lazarescu, de Cristi Puiu. Apressados, alguns especialistas já estão chamando essa “nova onda” de nouvelle vague romena. Pois que seja, uma vaga que traga consigo uma safra boa que oxigene o cinema. Mais do que nunca se precisa disso. De menos discursos e efeitos. Mais imagem pura, a honestidade do não-dito.
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